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Home > Artigos > Quantas Elizas e Márcias ainda teremos que perder para o machismo?

Liz de Oliveira Motta Ferraz – Ativista feminista e dos direitos humanos das mulheres. Historiadora. Especialista em Gênero, Desenvolvimento Regional e Políticas Públicas (UFBA). A aluna do Mestrado em Educação e Contemporaneidade é “ UNEB”. Pesquisadora sobre violência…

Estão nos matando. Esta é a conclusão óbvia. Estão matando as mulheres e pouco ou quase nada se tem feito para impedir.

Como em um progressivo massacre, as mulheres vêm sendo eliminadas por todo o Brasil. E isso não é de hoje. Historicamente muitas sucumbiram pelas mãos dos (ex) companheiros A pretexto de vingança, defesa da honra ou simplesmente porque lhes negaram sexo ou mencionaram a separação.
Vivemos em uma sociedade androcêntrica que é dividida sexualmente. E o machismo é filho dileto do androcentrismo é possui uma característica que lhe dá o ônus da dominação: a intolerância a qualquer coisa que ameace sua suposta supremacia. Diante do perigo tudo é possível e viável. Desde encarcerar até matar e desmembrar a parceira a fim de se manter como o ser superior da relação e na sociedade.

Embora possa parecer um exagero utilizar o termo massacre, as informações que se apresentam demonstram o quanto é factível nomear desta forma a sucessão de femicídios pelo Brasil afora.A última pesquisa realizada pelo Instituto Sangari, com base nos dados do Sistema único de Saúde, denominada Mapa da Violência no Brasil 2010 demonstra que entre 1997 e 2007, 41.532 mulheres foram assassinadas no Brasil; trocando em meados, em média 10 mulheres foram assassinadas por dia ou ainda, 4,2 assassinadas por 100.000 habitantes. Este indicador demonstra que o Brasil está acima do padrão internacional e que as políticas públicas implementadas pouco têm surtido o objetivo a que se propuseram: eliminar e punir a violência contra a mulher.

Os últimos casos que ganharam a atenção das midias, o assassinato de Márcia Nakashima e o desaparecimento e a suposta, e quase certa, morte de Eliza Samudio nos impele a refletir sobre a impunidade. Impunidade no sentido técnico e também subjetivo. Matar no Brasil se tornou banal e de uma facilidade vergonhosa. Fácil não no mbito moral ou Ético e pois essas questões me parecem, já foram devidamente suplantadas, mas na perspectiva da dinâmica jurídica que traz inúmeras brechas para justificar o injustificável é este sendo o sentido técnico da impunidade. Por outro lado, a percepção da sociedade de que a punição para os acusados destes dois casos será insuficiente ou mesmo que não se concretizará, reforça o sentido subjetivo da impunidade.

Seres humanos estão morrendo, mulheres assassinadas, cruelmente assassinadas. Recebi há poucos dias um email contendo fotos do corpo de Márcia ao ser retirado do lago onde foi encontrado. As imagens devem ter vazado da polícia de Guarulhos e chegado ao universo virtual e infelizmente não eram montagens. Não vale a pena descrever aqui o estado do cadáver após vários dias sob a água, nem imaginar o que o pai e o irmão sentiram ao ver Márcia naquelas condições; antes devemos pensar o que leva um homem a arbitrar o direito de vida ou morte de uma mulher pelo simples fato deste se achar superior a esta. Pensemos ainda o porquê de um homem manter uma mulher encarcerada contra sua vontade e matá-la com requintes de crueldade.

Casos como os de Eliza e Márcia proliferam diariamente. Alguns são expostos nos telejornais e outros são invisíveis aos olhos da população, mas o fantasma da impunidade paira sobre todos demonstrando o quanto estamos amarrados às regras machistas nas relações de gênero. Esta assertiva é facilmente comprovada quando ouvimos ou proferimos as opiniões que justificam as ações criminosas: No caso Márcia Nakashima é Como ela não sabia que ele era violento? Por que se envolveu? Ela deveria ter mudado de cidade quando terminou o relacionamento. Uma moça bonita nunca deve se envolver com um cara feio desse, só acaba em tragédia. No caso Eliza Samudio é uma boa bisca. Quis dar o golpe da pensão e se deu mal. Ela era uma vagabunda, se envolvia com jogadores para ter vida boa. É nisso que dá não querer trabalhar e ganhar dinheiro fácil e, a pérola das pérolas, Ela era atriz porno, só podia dar nisso.

Em meio aos comentários machistas percebemos ainda uma polícia despreparada ao lidar com os holofotes. Embora estejam aptos em solucionar os casos, o clima de tensão e vaidade entre os agentes policiais é evidente, o que dá munição para os intrépidos advogados de defesa encontrarem mais brechas para justificar o injustificável.

Após 52 anos da Declaração dos Direitos Humanos, as mulheres ainda são agredidas e assassinadas às margens deste documento. Temos uma Lei Maria da Penha que não engata, não toma fôlego e não cresce porque os sistemas jurídico e policial não conseguem dar conta da demanda crescente. Não temos policiais suficientes para vigiar a execução e cumprimento das Medidas Protetivas, inúmeros juízes/as não aplicam a LMP nos casos de violência contra a mulher e a falta de DEAMs e serviços dedicados às mulheres na maioria dos municípios brasileiros agrava esse cenário que, infelizmente, É o retrato da situação de insegurança e violência que muitas mulheres vivem diariamente.

Não desmerece a Lei 11.340/06, que completará quatro anos em 7 de agosto próximo; ao contrário, acredito firmemente que a Lei foi um avanço significativo na defesa das mulheres vítimas de violência visto que, além de penalizar, prevê políticas públicas e serviços. A grande preocupação é que são muitas agredidas, ameaçadas, humilhadas e assassinadas, para poucos serviços e profissionais capacitados para lidar com o fenômeno da violência de gênero.

Estamos perdendo Elizas e Márcias todos os dias para o machismo e a impunidade e muitos acreditam que as vítimas cavaram suas próprias sepulturas por conta dos seus atos. Isso me faz lembrar o conceito de dominação segundo Bourdieu:
A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de justificação: a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de se enunciar, visando sua legitimação. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se funda: É a divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos…[2]

Ou seja, julgamos as vítimas e justificamos os agressores sem nem percebermos. A dinâmica social androcêntrica impõe o poder masculino rotineiramente e as regras criadas neste bojo tornam-se senso comum e natural a tal ponto que as violências de gênero nem sempre são reconhecidas como tal. Mais fácil e cômodo é encontrar atenuantes ou desvios dos crimes. Lembro-me do assassinato de Eloá Pimentel que, em um dado momento após o crime, a imprensa passou a dar atenção total ao fato do pai da garota ser um matador de aluguel. Por pouco o caso Eloá não se transformaria no Caso Pai de Eloá. Assim também quase aconteceu com o caso Eliza Samudio quando os noticiários passaram a divulgar que o pai dela fora acusado de molestar um menor. Talvez seja mais fácil e cômodo para a sociedade desviar a atenção dos crimes de gênero para outros crimes paralelos que não ameacem a ordem natural das coisas.

(*) Ativista feminista e dos direitos humanos das mulheres. Historiadora. Especialista em Gênero, Desenvolvimento Regional e Políticas Públicas (UFBA). A aluna do Mestrado em Educação e Contemporaneidade é da UNEB. Pesquisadora sobre violência doméstica e de gênero. Participante da Marcha das Vadias – SSA/Ba. Co- Fundadora e colaboradora do Tecle Mulher. lizmotta@hotmail.com